28/06/2010

Psicanálise e Fenomenologia



A psicanálise e a fenomenologia tiveram muito provavelmente um tutor comum. Freud e Husserl tiveram como professor Brentano, e compartilharam os ensinamentos desse professor sobre Aristóteles. A psicanálise Freudiana, por essa razão, não pode ser acusada de inocência.
Peço uma breve interrupção na seqüência natural do curso para tentar situar no rastro da fenomenologia a compreensão da experiência da consciência pela psicanálise.
                O caminho que será feito nessa curta reflexão buscará uma redefinição do conceito de Inconsciente. A intenção é simples, mas não por isso fácil: buscarei tornar clara uma lição de Jaques Lacan onde ele mostra sob quais supostos a psicanálise freudiana se apóia para fazer a junção do campo da ética e da percepção.

1. Lacan apresenta como preâmbulo à sua discussão a Ética a Nicômaco e a divisão fundamental da Ética em seus dois campos consagrados: a episteme e o ethos (propriamente o campo teórico da ética e o campo prático). Na lição de Lacan, Aristóteles é o primeiro teórico da Ética a falar do problema de difícil apreensão: o homem racional que sucumbe à intemperança.

2. O problema seria compreender o que motiva aquele que é intemperante uma vez que epistemologicamente é capaz de saber o que é melhor para si e para o grupo; esse sujeito não deixa de agir segundo pressupostos que não parecem coerentes à um observador externo.

3. A psicanálise, diferentemente da psicologia acadêmica, buscou traçar um mapa fino da emergência dos dilemas morais na narrativa que uma pessoa articula a seu próprio respeito. Isso não torna o dilema moral algo subjetivo, mas só busca, através da observação, estabelecer o momento exato em que esse tipo de reflexão se instala como um problema a ser enfrentado.

4. A hipótese Lacaniana pode ser então traduzida da seguinte maneira:
                ““Minha tese é de que a lei moral, o mandamento moral, a presença da instância moral, é aquilo por meio do qual, em nossa atividade enquanto estruturada pelo simbólico, se presentifica o real.”
                Nessa citação, para tornar claro o jargão de Lacan, poderíamos precisar que na sua concepção há uma lei moral objetiva e seu reconhecimento se dá através da própria inserção que um sujeito x tem na linguagem. Ora, se a linguagem é o que permite o acesso do homem ao mundo, é no reconhecimento da linguagem como margem que ‘toca’ o mundo que o homem sente um primeiro vagido da sua limitação e sente o quanto há de objetividade no mundo que lhe supera. Para Lacan, a primeira lei moral se instaura não somente na decisão sobre o valor de um ato. A existência de alguma lei moral é algo que deve ser assumido por todo aquele ser participante da linguagem e que por meio desta é capaz de inferir seu limite com relação ao mundo.

5. Contrariamente à grande parte dos teóricos da ética, Freud busca argumentar contra uma crença bastante usual: a idéia de que o alinhamento das atitudes com algum Bem é responsável por uma sorte de prazer. Esta idéia sempre fora reconhecida por todos estudiosos, contudo sem questionar-se sobre os fundamentos do prazer. Freud busca justamente isso. Ele quer entender o quanto o prazer e a realidade se tencionam no psiquismo do sujeito e, a partir disso, como o homem se posiciona diante das questões morais.

5.1. Dessa maneira Freud buscou através de toda história da sua pesquisa deixar claro o que podemos entender como o prazer e a realidade no psiquismo. Seu estudo deu origem a dois princípios que governam a vida anímica: o principio de prazer e o princípio de realidade.

6. Primeiramente façamos a compreensão do aparelho psíquico que Freud buscou deduzir de seus pacientes:
                “Ele parte de um aparelho que, por sua própria tendência, se dirige ao engodo e ao erro. Esse organismo por inteiro parece feito não para satisfazer a necessidade, mas para aluciná-la. Convém, portanto, que outro aparelho, que se oponha a ele, entre em jogo para exercer uma instancia de realidade e se apresente, essencialmente, como um princípio de correção, de chamada á ordem”
                Para deixar mais claro. Na concepção de Freud, o homem tende à morte e na medida que tende à morte cria, realiza e inventa, para não encontrar tão imediatamente esse fim. O aparelho psíquico se constitui, basicamente, por uma tendência à morte que paradoxalmente encontra um princípio regulador que joga o psiquismo de volta à vida. Essas forças são chamadas por Freud de pulsão de morte e pulsão de vida.

7. Para fazer uma justa compreensão disso e justificar a diversidade das formas de vida entre os seres humanos vale citar aqui a passagem em que Lacan comenta o termo alemão que a justa medida nos passa a idéia de uma lei particular que se encontra em todos. Ou seja, um particular que de alguma forma reencontra o universal. O termo é o ‘Wunsch’.
                “Esse Wunsch, nos o encontramos, em seu caráter particular irredutível, como uma modificação que não supõe outra normatização senão a de uma experiência de prazer ou de penar, mas uma experiência derradeira onde ele jorra, e a partir da qual ele se conserva na profundeza do sujeito sob uma forma irredutível. O Wunsch não tem o caráter de uma lei universal, mas, pelo contrário, da lei mais particular – mesmo que seja universal que essa particularidade se encontre em cada um de nós seres humanos. Nós o encontramos sob uma forma que qualificamos de fase regressiva, infantil, irrealista, com o caráter de um pensamento entregue ao desejo, de um desejo tomado pela realidade.”

8.            “O princípio de realidade faz muito mais que um simples controle – trata-se de retificação. O meio pelo qual ele opera é apenas rodeio, precaução, retoque, retenção.”
                “A posição de Freud é diferente da dos idealistas. Para ele a realidade é precária. E é justamente na medida em que seu acesso é tão precário que os mandamentos que traçam sua via são tirânicos.”

                Aqui começamos a nos aproximar dos temas propriamente relativos ao curso. Ora, Freud, na concepção que criou do aparelho psíquico, foi levado a tomar o contato com a realidade como a superfície de um processo que se articulava em diversos níveis. Para ele, processos como a memória e a retenção em algum ‘lugar’ do aparelho psíquico eram fundamentais para explicar a adequação dos dados dos sentidos àquilo que é produzido pela consciência.

9. Para compreender o que vem a ser ao cabo o princípio do prazer e o princípio de realidade é necessário fazer então a distinção:
                - Principio do Prazer: Principio de funcionamento do aparelho psíquico que conduz a subjetividade do sujeito a reencontrar satisfações (prazer). Dada a natureza do pensamento humano ter estrutura de linguagem (tese filosófica), o principio do prazer atua no reencontro com o signo marcado de prazer pela história do sujeito.
                - Principio de Realidade: Atua em conjunção ao principio de prazer. Sua função, como exposto acima, é de retificar, retomar e reter.

10. Finalmente, do entrecruzamento desses princípios podemos buscar a compreensão da dinâmica do psiquismo em dois processos:

10.a. Processo Primário:
“Somos levados a articular o aparelho de percepção com o que? Com a realidade, é claro. (É ela que nos dá a exterioridade aos meus pensamentos). Entretanto, se seguirmos a hipótese de Freud, sobre o que, em princípio, se exerce o governo do princípio do Prazer? Precisamente sobre a percepção, e é essa a novidade que ele traz. O processo primário, nos diz ele na sétima parte da “Interpretação do Sonhos”, tende a se exercer no sentido de uma identidade de percepção. Pouco importa que seja real ou alucinatória, ela tenderá sempre a se estabelecer. Se ela não tiver a sorte de coincidir com o real, será alucinatória. Esse é todo o perigo, no caso de o processo primário ganhar a rodada.

10.b. Processo Secundário:
“O processo secundário tende a que? A uma identidade de pensamento (com a realidade). Se exerce no sentido de um tateamento, de uma prova retificativa, graças à qual o sujeito, conduzido pelas descargas que se produzem segundo as Bahnungen (caminhos) já trilhados, fará a série de tentativas, rodeios que pouco a pouco o levarão à anastomose, ao ultrapassamento da prova imposta ao sistema circundante dos objetos presentes nesse momento de experiência. O que forma a trama de fundo da experiência é, digamos assim, a ereção de um certo sistema de Wunsch, ou de Erwartung de prazer, definido como o prazer esperado, e que tende, por esse fato, a realizar-se em seu próprio campo de uma maneira autônoma, sem nada esperar, em princípio, do exterior. Ele vai diretamente à realização mais oposta ao que tende a desencadear-se.”


11. Para fazer a compreensão desse esquema devemos então articular o Sujeito, o processo que lhe ocorre e o objeto que é dado pelo processo:
                a. No psiquismo do sujeito atuam os princípios do prazer e de realidade.
b. O processo afetado pelo principio do prazer é a percepção-consciência, uma vez que envolve a busca de um objeto de satisfação não conhecido na realidade exterior (objeto em ultima instância conhecido como objeto causa do desejo).
c. Já o principio de realidade afeta os pensamentos que ocorrem em busca dos objetos já conhecidos. É neste ponto que ocorre a retificação do pensamento com a realidade e a realização da possibilidade do discurso verdadeiro. Objetos do pensamento são recolocados em relação com objetos do mundo.
d. A organização do esquema se dá dessa maneira por que as setas indicam a dinâmica e a organização por colunas indica o pertencimento. Dessa forma, o pensamento é inconsciente, assim como o objeto causa de desejo.
e. A percepção-consciência é um processo realizado pelo principio de realidade, assim como seus objetos são objetos da consciência para o qual há possibilidade de reconhecimento em palavras.
f. Como um objeto inconsciente pode ser conhecido? Uma vez que os objetos da consciência podem ser conhecidos pela estrutura da linguagem, podemos recuar no limite entre consciente e inconsciente e deduzir que
1. Se todos objetos são cognoscíveis por meio da estruturação da linguagem.
2. Se há objetos inconscientes.
3. Esses objetos devem ser também cognoscíveis por meio da linguagem.
4. Para que possam ser conhecidos por linguagem é necessário que tenham uma estrutura acoplável à linguagem.

Lacan nos diria:
“Esse processo, tal como nos é descrito em Freud, é inconsciente. – O pensamento é inconsciente. Não conhecemos esse processo no ato. O processo é indiretamente conhecido pelas palavras.”
                “No final das contas, não apreendemos o inconsciente senão em sua explicação, no que dele é articulado que passa em palavras. É daí que temos o direito – isso, ainda mais porque a continuação da descoberta freudiana no-lo mostra – de nos darmos conta de que esse inconsciente não tem, ele mesmo, afinal, outra estrutura senão uma estrutura de linguagem.”
                “O principio de realidade governa o que ocorre no nível do pensamento, mas é apenas na medida em que do pensamento retorna alguma coisa que, na experiência humana, ocorre ser articulada em palavras, que ele pode, como no princípio do pensamento, vir à consciência do sujeito, no consciente.”
                “Inversamente, o inconsciente, este, deve ser situado no nível dos elementos, de compostos lógicos que não são da ordem do logos articulados sob a forma de um orthos logos escondido no âmago do lugar em que, para o sujeito, se exercem as passagens, as transferências motivadas pela atração e pela necessidade, a inércia do prazer, e que valorizarão indiferentemente para ele tal sinal em vez de tal outro – visto que ele pode vir substituir o primeiro sinal, ou pelo contrário, ver transferir-se para ele a carga afetiva ligada a uma primeira experiência.”
                “Vemos, então, nesses três níveis, ordenarem-se três ordens, que são respectivamente as seguintes.”
“Há primeiro, digamos, uma substancia, ou um sujeito da experiência que corresponde à oposição principio do prazer/realidade.”
“Há, em seguida, um processo da experiência que corresponde à oposição entre o pensamento e a percepção. O que vemos aqui? O processo divide-se conforme tratar-se da percepção – ligada à atividade alucinatória, ao principio do prazer – ou do pensamento. É o que Freud chama de realidade psíquica. De um lado está o processo enquanto processo de ficção. De outro, estão os processos de pensamento, pelos quais se realiza, efetivamente, a atividade tendencial, isto é, o processo apetitivo – processo de busca, de reconhecimento e, como Freud explicou mais tarde, de reencontro do objeto. Essa é a outra face da realidade psíquica, seu processo como inconsciente, que é também processo de apetite.”
“Enfim, no nível da objetivação, ou do objeto, o conhecido e o desconhecido opõem-se. É porque o que é conhecido não pode ser conhecido senão em palavras, que o que é desconhecido apresenta-se como tendo uma estrutura de linguagem. Isso nos permite recolocar a questão do que ocorre no nível do sujeito.”
“As oposições ficção/apetite, cognoscível/não-cognoscível, dividem o que ocorre no nível do processo e nível do objeto. E no nível do sujeito? Devemos interrogar-nos em que consistem as duas vertentes a serem repartidas nesse nível entre os dois princípios.”
“Pois bem, proponho-lhes isto. O que, no nível do princípio do prazer, se apresenta ao sujeito como substancia é o seu bem. Uma vez que o prazer governa a atividade subjetiva é o bem, a idéia do bem que o sustenta. É a razão pela qual, em todos os tempos os éticos não puderam fazer menos do que tentar identificar esses dois termos, no entanto, tão fundamentalmente antinômicos, que são o prazer e o bem.”
“Freud não pensa em nem um instante em identificar a adequação à realidade a um bem qualquer. No Mal-Estar na Civilização, diz-nos – seguramente a civilização, a cultura pede demais ao sujeito.”

Chegando ao fim do texto me dei conta que não paguei as promessas que havia feito. Contudo, creio que essa introdução era necessária para tornar menos condensada a relação entre a psicanálise e fenomenologia. Se for possível, em outro post gostaria de explorar mais detidamente a relação entre o segundo post do curso e este post.


(Publish or Perish...) - Aceito sugestões de reescrita.

10/06/2010

O peso da existência é demais para meu joelho

O peso da existência pode ser pesado. Não no sentido de medido, mas de ser difícil de carregar.

Aprendi muito com meu joelho. Ele me ensinou. Me ensinou que passo a maior parte do tempo negligenciando que tenho um corpo.

Ele me dava a dor e a imobilidade, eu retribuia com o não-esquecimento e raiva.

Meu joelho me ensinou o valor de dar um passo. De passar adiante e do passado.

Me ensinou que preciso me recuperar para conseguir dar um passo a diante. Que era necessário passar pelo longo período de recuperação para poder voltar e ficar bem.

Aprendi com meu joelho que a natureza do meu corpo cuida de mim, mas que para isso, preciso ajudá-la.

Meu sábio joelho me ensinou a vê-lo como estando fora e depois a trazê-lo de novo para dentro (do corpo?)

Meu amigo joelho, me ensinou que o passado não precisa ser carregado no corpo. Que eu era livre para carregar o peso que achasse considerável e que para caminhar bem é preciso deixar alguns pesos para trás.

Boa recuperação, meu caro braço direito!