19/02/2011

Para retomar a poesia.

EL ROMANCE DE LA NIÑA NEGRA.

Toda vestida de blanco,
almidonada y compuesta,
en la puerta de su casa
estaba la niña negra.
Un erguido moño blanco
decoraba su cabeza;
collares de cuentas rojas
en su garganta dan vueltas.
 
 
Las otras niñas del barrio
juegan en la vereda;
las otras niñas del barrio
no quieren jugar con ella.
Toda vestida de blanco,
almidonada y compuesta,
en un silencio sin lágrimas,
lloraba la niña negra.
 
 
Toda vestida de blanco,
almidonada y compuesta,
en un féretro de pino
reposa la niña negra.
A la presencia de Dios
un ángel blanco la lleva;
la niña negra no sabe
si ha de estar triste o contenta.
 
 
Dios la mira dulcemente,
le acaricia la cabeza
y hermosas alas blancas
a sus espaldas sujeta.
Los dientes de mazmorra
brillan en la niña negra.
Dios llama a los ángeles
y dice: "Jugad con ella".
 
Luís Cané, Argentina: 1897-1957

sugestão de Loreto Valenzuela.

04/01/2011

Filme: O piano



Após ver o filme "O Piano" com o João, tivemos uma agradável conversa sobre nossos pontos de vista sobre o filme.
É interessante como a experiência de um filme ou de uma construção artística, de modo geral, pode ser igualmetne apreciada com palavras completamente diferentes, mas que buscam traduzir alguma coisa de universal que fica da apreensão.



O filme tem um roteiro simples, mas muito bem encaixado. Trata-se de um conflito nas condições materiais de sobrevivência com as condições subjetivas de sobrevivência. Isso aparece na mente de um homem que traz a Nova Zelândia do sec. XIX uma senhora para casar-se por contrato. Essa senhora é muda, por opção, e sua forma de expressão é a música - tocada através do piano - e os gestos, que são interpretados pela filha do seu casamento anterior. O dilema que está na mente de Stewart, um colonizador que não vê possibilidade nem necessidade de levar o piano à sua casa (no interior da ilha).

A razão pela qual vejo um casamento perfeito de cenário e narrativa é precisamente por que, dadas as condições rudimentares do lugar e a necessidade que Ada tinha de seu piano, a atitude de deixar o piano apodrecer na maresia possibilita um desenlace inesperado. O piano se torna o eixo do drama do casamento de Stewart e Ada e esse drama ocorre por uma determinada maneira que ele tinha de compreender o espaço e as necessidades dele nesse espaço.

A presença de Ada na aldeia de colonizadores não é desprezada por outros habitantes. Bela, triste e em crise por não ter seu piano, dos homens ela ganha admiração pela beleza e das mulheres ganha desconfiança de ser louca.

Essa situação somente começa a mudar quando um vizinho, Baines, decide trocar um pedaço de terras pelo piano, em um trato feito com Stewart sem o consentimento de Ada. A idéia de Baines é ter aulas com Ada e, aos poucos, seduzí-la.



Nesse ponto, acredito que uma das mensagens mais fortes do filme é transmitida. A forma de sedução que Baines empreende toca em Ada a formação de seu caráter. Ela é uma mulher que conhece a arte e que leva uma vida moral de acordo com os padrões europeus da época. É através da arte que ele penetra na vida dela e essa forma de participação é precisamente aquilo de que ela está afastada, uma vez que seu marido não tinha o menor interesse pelo piano. A sedução é moral e ética nessa história, pois o campo reservado para apresentação do interesse dele por ela inclui deixá-la expressar-se ao piano e, desse modo, fazer dela aquilo que ela é.

Na sedução Baines articula o interesse de Ada pelo piano e joga isso ao seu favor deixando que ela demonstre ser quem ela crê ser e, nesse ponto, onde ela vê sua expressão ser garantida por esse homem, ocorre o interesse.

Outro ponto importante, que vem a corroborar o argumento do filme, é a cena onde Ada, num lance desesperado joga-se ao mar com o seu piano. Essa cena ocorre no seu retorno à Europa. ocasionado pela destruição do seu casamento devido ao relacionamento com Baines. Ela se joga ao mar, aparentemente, pela falta de perspectivas em voltar a tocar piano, uma vez que num acesso de raiva seu Stewart lhe cortara um dedo. Essa falta de perspectiva, que implicaria na perda do seu principal meio de expressão, a leva a tentar o suicídio onde a imagem da própria morte seria a de estar amarrada ao piano, como uma criança está amarrada à mãe pelo cordão umbilical.

O cordão umbilical é uma das cenas que sabemos estar na nossa origem e, se a origem responde por alguma parte do que somos, o piano, nessa cena, responde por aquilo que ela é. A cena, como bem comentou meu amigo João, é uma cena onde ela chega ao ponto zero de sua existência. Imaginar a própria morte é uma forma de traçar o limite de sua própria consciência do mundo.

26/12/2010

O que você come quando come uma maçã?


As Categorias e o Objeto que é visto.

Buscarei fazer uma breve apresentação do conceito kantiano de imaginação valendo-me do texto de “The Role of the imagination in Kant’s theory of experience” de Sellars e do conhecimento acumulado ao longo do semestre com a leitura da Crítica da Razão Pura. A questão que buscarei abordar é escolhida por mim para mero exercício de revisão e também por que acredito ser possível de abordar dado pequeno tamanho do texto: Qual o papel que jogam os conceitos puros do entendimento (as categorias) no entendimento do “objeto que é visto”?
               
1.       Distinções
Para Wilfrid Sellars há uma série de distinções fundamentais que devem ser feitas no tocante à intuição empírica. Uma intuição é, para Kant, uma representação imediata de um objeto singular. Essa forma de representação é obtida através da sensibilidade, ou seja, da nossa forma de receptividade de dados sensíveis, e, nesse caso, a intuição é aquilo que nos é apresentado daquilo que foi recebido pela sensibilidade. As formas puras da intuição são o espaço e o tempo. Chamamos de puras por que são condições para intuição de qualquer objeto empírico. Essas são as formas pelas quais objetos são dados à mente humana, por isso chamamos o espaço e tempo de condições da representação dos objetos empíricos. Esse caráter garante que as formas puras da intuição sejam a priori e que sejam aspectos formais da experiência.
Assim, a primeira distinção que podemos fazer se encontra na diferença entre o objeto visto e ato de ver. Esta diferença é resultante do idealismo transcendental kantiano, pois ela se funda da divisão que há no aspecto representativo do objeto que se apresenta na visão e da coisa em si, aquilo que estimula a sensibilidade e gera a representação. O espaço que há entre o primeiro e o segundo exige que pensemos o objeto representado (visto) como algo diferente da sua produção na mente, algo que é função da imaginação produtiva que abordarei posteriormente.
Dada essa diferenciação, podemos falar de outra que trata da apresentação sensória do objeto. Se tomarmos como exemplo a experiência visual, veremos que aquilo que a sensibilidade nos apresenta por meio da intuição é de duas espécies: a. apresenta uma estrutura física complexa b. apresenta uma perspectiva das coisas que são apresentadas.
                Essa distinção é fundamental no entendimento da apresentação da intuição. Ora, na intuição empírica os objetos apresentam-se de acordo com as determinações do tempo e do espaço. Nesse sentido, Sellars diz que elas têm uma estrutura física, pois esse é o mundo físico que conhecemos. Entretanto, no modo como essas estruturas físicas se nos vêm aos olhos os objetos representados nelas não se apresentam na sua completude de perspectivas. Ao caminhar pela rua temos algumas perspectivas sobre os objetos que encontramos, contudo, não os tomamos como incompletos, pois pelo fato de não termos acesso imediato às demais perspectivas, não estamos autorizados a dizer que estas não existem no objeto empírico.
                Isso nos leva próximo a mais uma distinção. Essa, por sua vez, concerne ao ato de perceber. Há um objeto percebido e há um modo como o objeto é percebido. Tradicionalmente essa distinção é compreendida diferenciando o objeto visto e o juízo perceptivo sobre o objeto. Esse juízo é uma crença sobre o que é o objeto e sua construção é análoga à estrutura sintática de uma frase falada. Isso não significa que a construção da frase capaz de expressar a intuição do objeto tenha um demonstrativo, como alguns filósofos compreenderam. Na opinião de Sellars, há uma diferença entre aquilo que é tomado pela percepção e aquilo que se crê sobre o que é tomado pela percepção. Assim, há uma distinção entre aquilo que é fonte do juízo – aquilo que é tomado pela percepção - e o juízo ele mesmo – o que se crê sobre o que se tomou.
               
2.       Experiência e Percepção.
A última distinção da seção anterior é fundamental para iniciar uma discussão sobre o que é a experiência de um objeto no modelo Kantiano. A experiência não é somente a formação de uma intuição que mantenha uma relação com um conceito. Há um determinado modo como esse processo se dá que inclui a formação de crença sobre o que se tomou na intuição empírica e isso é determinante na verdade de qualquer juízo sobre a experiência.
Nessa distinção residem outros problemas para resolver, pois na estrutura de uma simples crença como “o tijolo é laranja” encontra-se uma série de outras crenças implícitas. Essas crenças implícitas são parte de algo maior que a percepção,trata-se de crenças que estão incluídas na experiência. Para tratar disso com mais facilidade utilizaremos o exemplo da maçã. A maçã é tem uma face vermelha por fora que nos é apresentada e no seu interior sabemos que está a carne do fruto que é da cor branca. Entretanto, não vemos o branco, somente acreditamos que no interior da maçã há uma parte branca e isso faz parte da experiência que temos da maçã, não atualmente na percepção, mas através da faculdade de imaginar. Como nos alerta Sellars sobre o branco da maçã, “note-se que dizer que está presente na experiência em virtude de ser imaginado, não significa que está apresentada enquanto imaginada”, ou seja, trata-se de uma distinção fina entre aquilo que é apresentado como existente para o sujeito que percebe enquanto imaginado e aquilo que se apresenta como existente na mera percepção.
Para apresentar os resultados que chegamos até aqui, ninguém melhor que o autor:

“Vemos uma maçã vermelha e gelada. Vemos enquanto vermelha no lado da sua face, no lado oposto, e enquanto contendo um volume de carne branca gelada dentro. Não vemos da maçã seu lado oposto, ou seu interior branco, sua temperatura ou seu suco. Mas enquanto essas características não são vistas, elas não somente acreditas. Essas características estão presentes no objeto de percepção enquanto atualidades; Elas estão presentes em virtude de serem imaginadas.” (21)
3.       A imaginação.
Na crítica da razão pura, Kant apresenta a imaginação no parágrafo 10 como uma função cega de síntese. Essa função é descrita como sendo responsável pela ligação do múltiplo da intuição e sobre ela é legitimo perguntar como se dá a organização do múltiplo, uma vez que ela, uma vez organizada, tem uma ordem espaço temporal e um determinado modo de ocorrer.
Para compreender esses dois aspectos devemos diferenciar dentro do conceito de imaginação duas atividades fundamentais do intelecto: a primeira é chamada de imajar (formar imagens) e a segunda é a conceitualização.
Imajamos estruturas unificadas, onde uma maçã, com um volume interior branco e suculento nos aparece. Criar essa imagem e representá-la na intuição pressupõe uma regra de formação que é executada pelo intelecto através de uma ação unificada. O nome do ato de formar essa imagem específica é guiado por um conceito cuja regra de formação dá-se o nome de maçã.[1]
Como nos diz Sellars, o aspecto sensível e próprio dos objetos é comum à estrutura da imagem e à conceitualização, assim como à crença. Quando pensamos a maçã com sua imagem definida, há tomada do objeto enquanto algo determinado e temos também o conceito que expressa a regra de síntese capaz da formação da intuição através de notas características. A relação do conceito com a intuição não é perspectiva. A intuição se forma através de estruturas imagéticas sensíveis que mostram partes de um objeto, já os conceitos são representações gerais e em nada são perspectivos.
A construção da imagem é realizada a partir do estímulo à retina, feito pelo contato com o objeto e pela adição de crenças e memórias que produzem ou reproduzem o objeto. A imaginação pode ser produtiva ou reprodutiva. A primeira é condição para a segunda, pois só podem ser reproduzidos objetos uma vez produzidos na mente. A imaginação produtiva tem um papel fundamental na construção da estruturação do espaço, pois somente ela é capaz de construir através de uma regra uma imagem que utilize o múltiplo da proveniente da sensibilidade. Essa regra, como já dissemos é dada pelo conceito, contudo, o conceito não fornece a perspectiva pela qual o objeto será construído na intuição. Por essa razão Kant é obrigado a introduzir aquilo que ele chamará de esquema. O esquema de um cachorro é diferente do conceito de cachorro. O esquema de um conceito é o conjunto de modelos de imagens capazes de identificar um conceito para um observador. O exemplo mais simples de Sellars sobre o esquema é a analise de uma observação continuada de uma pirâmide.
“O conceito de uma pirâmide vermelha estando em varias relações com um observador inclui uma família de conceitos pertencentes à sequencias de imagens-modelos perspectivas de alguém que confronta a pirâmide. Essa família pode ser chamada de esquema do conceito de pirâmide.” (33)

Sellars nos faz notar que o esquema da pirâmide não se segue do conceito de pirâmide somente. Ele se segue do complexo conceito de pirâmide em tais e tais relações a um observador. Desse modo, na experiência de um objeto, é que ocorre a ação da imaginação produtiva. A imaginação reprodutiva associa objetos uma vez produzidos. A associação é feita utilizando os esquemas derivados dos conceitos, sintetizando a sensibilidade e o ato do entendimento.

4.       As Categorias e a Imaginação.
Sabemos que a função de síntese do múltiplo da intuição é entendida por Kant como uma ação do entendimento que se dá através de conceitos puros do entendimento que são chamados categorias. Esses conceitos, como dissemos acima, são condições para a experiência de objetos empíricos e sua validade é atribuída aos objetos espaço-temporais no contexto da dedução transcendental.
Quando ocorre a formação de uma intuição empírica, nela já atuam os conceitos puros do entendimento, tal como nos é demonstrado no parágrafo 14 da Crítica da Razão. Podemos encontrar a forma das categorias nas intuições de objetos da experiência, mas não podemos dizer que a imagem que se apresenta aos nossos olhos apresenta as categorias. Em outras palavras podemos dizer que a imagem não tem uma estrutura gramatical (dada pelas categorias), somente aquilo que é o objeto visto na imagem tem essa estrutura. Um exemplo paradigmático dessa diferenciação é dado ao vermos a areia da praia e a linha do horizonte do oceano. Se fizermos uma dissociação meramente explicativa dos momentos da percepção, poderíamos primeiramente ver a água acima da terra, pois no campo visual se o observador discrimina somente cores ele veria dessa maneira: duas linhas horizontais que delimitam grupos mais ou menos homogêneos de cores. Isso não é suficiente para que haja entendimento, é importante tomar a imagem como algo e é precisamente nesse ato que as categorias do entendimento novamente atuariam no nosso esquema. Elas dão o discernimento necessário para a compreensão do espaço, pois elas o unificam e são a ferramenta de discernimento dos diferentes objetos presentes. Evidentemente sabemos que isso se dá num ato somente, contudo é importante essa diferenciação meramente esquemática para compreender o papel das categorias na apreensão de um objeto segundo um sentido possível e que esse sentido possível está profundamente enraizado no esquema do conceito, sem o qual intuições seriam sem sentido.
O que confere a estrutura visual dos objetos é a ação das categorias sobre a intuição. Os conceitos puros do entendimento fornecem uma base gramatical para o pensamento dos objetos da intuição. Essa base gramatical não nos fornece imagens-modelos que sejam base para o esquema dos objetos, contudo está na base da estrutura necessária de síntese do espaço para que um objeto apareça à mente. Portanto, as categorias já atuam na formação do esquema quando este é derivado de um conceito de objeto.

5.       Conclusão
Voltemos então ao problema inicial: Qual o papel que jogam os conceitos puros do entendimento (as categorias) no entendimento do “objeto que é visto”?
Se as categorias já estão presentes no esquema e este é o conjunto das intuições de um objeto determinado tomadas perspectivamente, então devemos admitir que sua ação se dá também na tomada do objeto que é visto, pois este é a forma como tomamos pelo entendimento o objeto que se dá na intuição. Devemos entender que a significação do conceito sobre o esquema é o que determina o objeto que é visto pelos olhos do entendimento e o papel organizador das categorias sobre a “montagem” da intuição deve ser reconhecida como atuante em conjunção com o papel sintético da imaginação.
Tanto a imaginação produtiva deve produzir objetos em conformidade com as regras de síntese do entendimento, como a imaginação reprodutiva deve associar objetos de acordo com essas regras. Se não houver uma ação conjunta das categorias com a imaginação, os objetos que são vistos não estariam em conformidade com o esquema, logo, não haveria identidade entre o objeto visto e o que se vê do objeto.



[1] Um conceito é uma representação mediata que reúne objetos singulares sob uma regra universal de formação. Essa regra de formação tem a estrutura de um juízo, pois todos os conceitos são compostos de notas particulares que os torna predicados possíveis de juízos.
A unidade do conceito de um objeto empírico com a sua intuição correspondente é traçada pelos conceitos puros do entendimento, as categorias. Estes conceitos são atos de síntese pura do entendimento e são condição para a experiência do mundo.

22/12/2010

A inevitabilidade da filosofia

[1] Introdução e objetivos

É discutível se preciso saber o que estou fazendo para poder saber como fazer bem.

Ora, visto que a virtude se adquire pelo hábito, i. e., a constância de uma atividade gera sua perfeição, [de modo que o que distingue o músico do músico virtuoso é a quantidade e a qualidade das notas tocou durante toda a vida]; parece inescapável a pergunta “Como?”, i.e., como eu devo agir para desempenhar virtuosamente minha atividade?, i.e., como os dedos devem se movimentar para gerar boa filosofia?

A despeito disto, parece absolutamente razoável que descobrindo o que exatamente é isto que deve ser feito a tarefa de como fazê-lo torna-se muito mais fácil. Qualquer um está disposto a aceitar sem muitas dificuldades que para poder explicar propriamente como algo deve ser feito, devemos antes saber o que é esse algo que deve ser feito de tal e tal modo. Assim, parece inegável que a tarefa de explicar o ser de algo é anterior a tarefa de explicar como fazê-lo para ser aquilo que é. De modo que falar como algo deve ser feito sem saber o que é que se está fazendo é um exercício - de todo - cego. Assim, se posso falar que o que estou buscando é algum tipo de iluminação sobre como devo fazer filosofia, é inegavelmente anterior a pergunta - “O que é a filosofia?”.

A filosofia não se define, tal qual a ciência, pelo estudo de um objeto específico. Ela não descreve nem explica os efeitos das coisas no mundo, tampouco é um estudo da razão pura argumentando em favor de verdades incondicionadas. A despeito disto, [] fico me perguntando - qual o significado do termo “A filosofia”? Será possível apresentar uma explicação que responda pela definição essencial do que quer que ela seja? Não haveria de certo um ponto de foco que toda filosofia retiraria sua inteligibilidade?

[2] Busca pelos critérios da definição: Matéria e Forma

Parece de todo inegável que o que quer que seja a filosofia em si mesma o seu exercício demanda leitura e escrita de textos. Somos levados por um ritmo peculiar de ordenar as palavras, e, com o hábito aprendemos a analisá-las em busca dos seus significados e possibilidades. Através da filosofia aprendemos a história do pensamento ocidental em seus mais diversos desdobramentos, de modo que não é de todo absurdo supor que ela é um ramo especifico da história do conhecimento. No limite podemos dizer que ela não é nada além de um mito criado pela engenhosidade da razão pura.

Qualquer uma das caracterizações acima parece profundamente significativa do que seja a filosofia, i. e., cada uma apresenta uma explicação do fazer filosófico. Ouso afirmar que todas apreendem aspectos necessários de uma concepção completa de filosofia, seja histórica, seja analítica, seja mítica. Porém, imagino que nenhuma corresponda à explicação essencial do que seja a filosofia. Encontrar o que corresponde à natureza da filosofia [se é que é possível falar disto] é descobrir o que é que faz com que tenhamos que ler e escrever; analisar; estudar a história do conhecimento humano e no limite que possamos argumentar engenhosamente contra a própria legitimidade da filosofia.

O que causa a filosofia? Seja o que for para uma definição completa tal causa deverá ser tanto necessária quanto suficiente. Pois, conceber a filosofia como um mito ou como história do conhecimento não pode ser dito da filosofia sem mais, mas apenas filosofia de tal e tal tipo. De modo que o que procuro é uma explicação que seja capaz de dar conta dos efeitos gerados pelo fazer filosófico constante.

Se é possível conceber a filosofia como uma empresa analítica, histórica ou mítica, então o que procuro é algo que possa dar conta de unificar todas essas caracterizações sob o foco de uma explicação. O que faz com que essas concepções sejam filosóficas? Tal questão pode começar a se esclarecer se percebermos que uma diferença precisa ser adicionada na explicação essencial da filosofia. Tal diferença corresponde à forma peculiar que um discurso deve ser ordenado a fim de ser filosófico. É por estar de tal e tal modo disposto que o mito ou a análise podem ser ditos filosóficos. Assim, uma dada matéria mítica ou histórica só é filosofia se a sua estrutura inteligível for filosófica. Mas, o que distingue um mito filosófico de um mito normal? O que faz com que uma análise seja filosófica e não puramente lógica? O que torna peculiar a história da filosofia?

Seja o que for, para explicar o que é a filosofia, devemos descobrir o que distingue um texto filosófico de um texto literário. Pois uma definição do que é filosofia deverá ser algo do tipo “mito contado em vista de tais e tais propósitos filosóficos” ou “análise feita com objetivo de esclarecer tais e tais assuntos filosóficos”. De modo que falta explicar exatamente o que são esses propósitos ou assuntos filosóficos que respondem pela diferença, i. e., pela forma atualizada de um discurso filosófico.

[3] função positiva: teleologia e contemplação

Responder teleologicamente o que causa a filosofia, i.e., responder qual a sua finalidade, pode parecer um assunto embaraçoso. No entanto é justamente no seio de tal embaraço que pretendo recolher algumas informações cruciais para o desenvolvimento do argumento. O que a filosofia visa? Qual o propósito de se fazer filosofia? Por que nós não podemos relegá-la ao porão do conhecimento [junto com tudo aquilo que não nos importa mais]?

É lugar comum que a filosofia é de todo uma tarefa inútil, i. e., ela não produz resultados práticos como a cura de uma doença ou a criação de um computador [digamos que a filosofia pode até contribuir para tal, porém, não enquanto filosofia]. A filosofia enquanto filosofia não deve, nem pode servir para coisa alguma que não a pura e simples contemplação. E neste sentido a filosofia não se distingue em nada da física e da matemática puras, tampouco da arte. Todos esses ramos do conhecimento visam em última análise, a satisfação de um desejo intrínseco do ser humano, um desejo que constitui o ser humano [abordarei mais sobre tal desejo no próximo ponto]. Assim, a filosofia visa à satisfação de um desejo. Neste sentido, a satisfação gerada por fazer filosofia se assemelha a satisfação gerada pela contemplação de um pôr-do-sol ou do céu em uma noite estrelada. E a satisfação gerada, seja por contemplar um Pollock, seja por ver a beleza da prova de um teorema matemático, seja por fazer filosofia, são todas de um mesmo gênero [o gênero das coisas que glorificam o espírito humano]. De modo que, em última análise, fazer filosofia, bem como arte e etc, são formas de completar algo que nos falta, i. e., satisfazer um desejo. Buscar meios de suprir tal falta, como forma de elevar o espírito humano as alturas, deve também ser tarefa da filosofia. De sorte que o único “produto” gerado pela filosofia é, num certo sentido, pessoal e intrínseco a própria atividade. Em uns ela gera paz de espírito, em outro produz cada vez mais material para perplexidades.

Porém, apesar de caracterizar a filosofia [juntamente com outras atividades] como uma atividade que visa à glória do espírito humano através da contemplação, a despeito desta condição necessária, tal caracterização positiva do que é a filosofia não é suficiente para defini-la, visto que ela se confundiria com coisas como Pollock ou o teorema de Godel.

Assim, falando abstratamente a filosofia satisfaz um desejo e enquanto atividade pode ser caracterizada positivamente como um meio para alcançar um determinado fim que constitui o homem enquanto homem. Porém, qual é esse fim, i.e., qual exatamente é esse desejo que é próprio do homem? Talvez uma melhor precisão do que quero dizer por desejo do homem enquanto homem possa trazer alguma luz a respeito do que distingue a filosofia das demais atividades que satisfazem tal desejo.

[4] O desejo de conhecer

O desejo é, em última análise, aquilo que está por trás de qualquer atividade. De modo que tudo que fazemos visa em alguma medida à satisfação de um desejo. O desejo é forma da ação; é ele que explica qual a finalidade de se fazer tal e tal coisa. Assim, parece evidente que nos movemos por nossos desejos, i. e., agimos com vistas a sua satisfação, i. e., somos naturalmente tentados a buscar aquilo que nos plenifica. Disto segue-se que a faculdade desiderativa é a marca característica dos seres imperfeitos. Nós desejamos apenas na medida do que nos falta. Ninguém deseja algo que julga não precisar, tampouco aquilo que não vá trazer algum tipo de satisfação com a sua realização.

Tomando por base a definição canônica de homem, [a saber, animal racional,] é possível fazer uma distinção entre os tipos de desejos pertinentes ao homem. De um lado temos os desejos derivados da animalidade como beber, comer, fazer sexo e etc. Do outro temos desejos relativos à racionalidade como agir bem, ser feliz ou conhecer a nós mesmos e o mundo.

Sem entrar em muitos detalhes defendo que o conhecimento é condição de possibilidade para felicidade e para agir bem, pelo menos no sentido de que é impossível alguém ser verdadeiramente feliz sem agir bem, e agir bem é fazer o melhor que se pode com as contingências que a vida nos impõe. Assim, aquele que sabe qual é a melhor coisa a se fazer, necessariamente conhece algo, sejam suas limitações, sejam suas potencialidades. De modo que conhecer é condição para bem agir e bem viver. Portanto, o desejo do homem pelo conhecimento é condição para conceber todos os outros desejos racionais.

Donde é possível dizer que todo homem enquanto animal busca os prazeres corporais, a vida e a reprodução. De outro lado todo ser humano enquanto racional busca necessariamente o conhecimento. A busca pelo conhecimento constitui a essência do ser humano, visto que a racionalidade distingue o ser humano dos demais animais. Portanto, digo que somos seres essencialmente ignorantes visando o conhecimento. Somos afeitos ao conhecimento, seres conscientes de que algo nos escapa, de que algo nos falta, seres que desejam a completude, seres que desejam suprir a carência que nos constitui.

Abstratamente falando a filosofia é uma forma de satisfazer o desejo do homem pelo conhecimento. Sob um aspecto ela é uma atividade que visa elevar o espírito humano, ela busca suprir a carência deste algo que nos falta e nos constitui. Se a filosofia é capaz de responder as questões mais fundamentais a cerca de nós mesmos e do mundo, então ela é a única empresa que verdadeiramente satisfaz o desejo do homem pelo conhecimento.

[5] primeira síntese e conclusões preliminares

De modo geral até o momento ter apresentado os seguintes argumentos:

P1. A filosofia enquanto matéria é história, análise ou mito.

P2. Para uma definição completa tal matéria deve possuir uma forma que a distinga.

P3. A forma será dada pela finalidade da filosofia.

P4. Por ser uma atividade que não visa um produto, i. e., tem valor intrínseco, a filosofia visa a glória do espírito humano através da contemplação. [finalidade positiva]

P6. Isto é compartilhado com outras atividades.

P6. Os seres humanos desejam o conhecimento.

C.1 Seja o que for que distinga a filosofia ela deve ser relativa ao desejo do ser humano pelo conhecimento. Tal atividade deve ser contemplativa com vistas à glória do espírito humano, i.e., deve ele satisfazer de algum modo o desejo do ser humano pelo conhecimento.

P7. Desejamos nos completar.

P8. A falta constitui nosso desejo.

P9. O desejo constitui a racionalidade.

C.2. A filosofia trata do que nos constitui. [i.e., do que nos falta]

[6] Dos limites do conhecimento

Muito da filosofia se fez na busca pelas condições de conceptibilidade. A pretensão metafísica, que sempre foi à tarefa filosófica por excelência, era o desejo de empreender na busca pelas condições necessárias e suficientes para o ser absolutamente geral. No processo de vir a ser da filosofia nós nos deparamos com as condições do pensamento. Até um dado momento a filosofia era a responsável por encontrar tais limites e extrair o máximo de coisas que se lhes decorressem. Ressalto dois dos mais importantes limites que o pensamento, e, conseqüentemente o conhecimento humano estão sujeitos, a saber, o princípio de não contradição e a impossibilidade de conhecer as coisas em si mesmas.

O importante é perceber que os limites da razão geram conseqüências drásticas para a legitimidade do desejo pelo conhecimento. Se o objeto da filosofia é impossível, a saber, conhecer as coisas nelas mesmas, então resta apenas à ciência. Nesse caso a filosofia enquanto empresa que satisfaz o desejo pelo conhecimento não passa de pura ilusão. Ela seria uma atividade assemelhada com a arte e a religião, i. e., seria apenas um modo de preencher o vazio das coisas inexprimíveis que estão além da nossa capacidade de entender. Seria a filosofia apenas um mito? Seria possível a satisfação do desejo pelo conhecimento? Pretender conhecer seria o mesmo que pretender voar, i.e., algo impossível para nós?

[6.1] princípio de não contradição

Eu não conheço ninguém razoável que tente negar o princípio de não contradição. Quanto o Filósofo formulou [nos tempos da ainda “viva” filosofia] como - algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto – imaginava-se que era um primeiro princípio, algo da realidade fundamental do ser enquanto ser.

Os primeiros princípios eram considerados os limites da realidade possível, i.e., condição de possibilidade para existência. O mundo era algo considerado dado, nosso trabalho passava por tentar entender a realidade última desse mundo que nos é de todo acessível. Assim, as condições de conceptibilidade do mundo eram idênticas as do pensamento, sendo considerados primeiros princípios da realidade. De modo que o princípio de não contradição afigurava-se na base da estrutura inteligível da realidade.

[6.2] impossibilidade de conhecer a coisa em si

Só podemos conhecer as coisas pelo modo que nos é dado a conhecê-las. Quando o Crítico demonstrou que só podemos conhecer os fenômenos e que é impossível conhecer as coisas nelas mesmas, ele enterrou a possibilidade da metafísica. O princípio de não contradição deixou de ser entendido como um princípio fundamental da realidade do ser. Ao passo que se tornou apenas um mecanismo por meio do qual pensamos os objetos. Perdendo assim seu estatuto ontológico e sendo “rebaixado” a um princípio lógico/epistêmico. A filosofia perdeu a possibilidade de legitimar-se a si mesma quando deixou escapar a coisa em si por entre os dedos. A razão não é capaz de garantir a correta aplicação dos seus princípios próprios de funcionamento para as coisas nelas mesmas. Donde se segue que a pergunta - “o que é a filosofia?” torna-se uma pergunta problemática. A outrora rainha das ciências da noite para o dia perdeu a autoridade do seu império. Nesses termos, a filosofia seria apenas um mito?

[6.3] O mito

Os mitos servem para atribuir significação. Considero-os como que romances de formação, i. e., o produto da consciência humana que visa formar uma concepção da realidade. Os mitos pretendem dar uma explicação sobre as causas do mundo [para o ser das coisas]. Através dos mitos o homem se constitui enquanto ser consciente de si e do outro. Percebe o seu lugar no tempo e no espaço.

O mito da filosofia é criado quando percebemos que a razão é incapaz de legitimar a sua própria pretensão de conhecer incondicionalmente as coisas. Se só podemos conhecer as coisas pelo modo mesmo como pensamos e, o modo mesmo como pensamos não garante acesso as coisas sem mais, então não podemos conhecer as coisas sem mais, mas somente do modo como pensamos. Nesse caso, a crença na razão pura enquanto provedora de conhecimentos necessários e universais não passa de um mito criado pela própria razão.

[7] o mito e a glória das aparências

Possivelmente a filosofia tal qual nós a conhecemos seja verdadeiramente um mito. Talvez crer na razão não passa de um puro ato da fé. A busca por verdades incondicionadas podem ter mostrado ao espírito humano suas limitações necessárias. Não há escapatória ao princípio de não contradição, tampouco somos capazes de conhecer as coisas nelas mesmas. O princípio de não contradição é a forma básica do pensamento, é impossível pretender pensar em algo que não esteja de acordo com a sua limitação. Do mesmo modo nossa capacidade de pensar as coisas passa pelo modo mesmo com as pensamos. É inaceitável que possamos conceber algo contraditório, porém, é perfeitamente possível que exista o inconcebível. O modo mesmo como nós necessariamente pensamos, não garante nada do que em si mesmas as coisas necessariamente são.

Assim, a filosofia conhecer [por meio da razão] as coisas nelas mesmas. Se o acesso as coisas nelas mesmas é impossível, então somos capazes apenas de conhecer os fenômenos enquanto nos aparecem. A ciência conhece através dos fenômenos. Se a ciência só é capaz de descrever fenômenos e ela é o meio pelo qual conhecemos, então podemos ter apenas segurança das aparências.

A ciência prova como as coisas nos aparecem. Através da manipulação dos efeitos dos fenômenos sobre a nossa capacidade de representação nós criamos máquinas, curamos doenças, fazemos guerras. Vamos descobrindo meios para tornar nossa vida melhor, aumentando nossas perspectivas, alargando nosso espírito e alimentando nosso desejo pelo conhecimento.

A despeito disto, onde estaria a glória da filosofia? Haveria algum lugar para ela fora do porão das quinquilharias do conhecimento?

[8]. O que falta que nos constitui?


Somos; seres cônscios da própria morte.

Obras inacabadas de nós mesmos

Vivendo na sombra do que nos escapa.


De um lado, desejamos o conhecimento do ser;

Doutro, sabemos que [mais que tudo]

Queremos o que não podemos conhecer.


Inquietos... – [com as relações].

Intolerantes... - [com o efeito da gravidade].

Insatisfeitos... – [com nosso time de futebol].


Não obstante, desejamos tão intensamente o incognoscível...

- seres essencialmente ignorantes; Nós

Que somos cônscios da própria vida.


[9] função negativa: legitimar a carência

Até o momento falei do desejo pelo conhecimento em seu caráter positivo, porém há uma contrapartida desse caráter positivo, i. e., se desejamos o conhecimento é por que não o possuímos. A filosofia é a empresa humana que visa à contemplação pela glória da humanidade, ela tem uma função positiva compartilhada com outras atividades, porém, seria possível pensar em alguma função negativa que pudesse a distinguir das demais atividades contemplativas?

A história da humanidade é a história de pessoas que buscaram aquilo lhes escapa. Somos seres essencialmente carentes de algo. Somos seres essencialmente finitos e limitados. Porém, desejamos entender; desejamos nos completar; desejamos os infinitos.

A filosofia trabalha com os limites, com as carências. A filosofia como função negativa, tem o papel de mostrar que somos imperfeitos, que somos desejosos de algo que nos falta e que essa falta nos constitui. A filosofia é responsável por nunca nos esquecermos da nossa ignorância, que é ela que em última análise nos move e motiva. Desejamos o conhecimento por que somos essencialmente ignorantes. Desejamos o conhecimento por que algo nos falta. Assim, a filosofia enquanto função negativa é responsável por sempre nos lembrar que somos humanos e o conhecimento que podemos ter é apenas humano, i.e., somos seres imperfeitos e limitados.

A filosofia se distingue das demais atividades contemplativas, pois ela é a única que responde verdadeiramente por nossos limites. A filosofia busca o que não podemos conhecer, para que deste modo libertemo-nos da pretensão de que podemos ser deuses. De modo que de posse daquilo que não podemos saber, estejamos mais verdadeiramente prontos para assumir aquilo que somos. Ela se distingue por buscar em nosso pensamento as condições para que possamos pensar, i. e., as condições para que possamos conhecer.

Assim, é a única atividade que retira sua distinção daquilo mesmo que nos falta e nos constitui. E é sua a tarefa de sempre nos lembrar que em última análise nós somos essencialmente humanos. Nesse caso, a filosofia é a guardiã do limite, ela legitima o nosso desejo pelo conhecimento garantindo que nunca deixaremos de ser seres imperfeitos.

[10]. Segunda síntese e conclusões

Com a última peça do argumento fornecida pela função negativa da filosofia é possível vislumbrar uma definição que compreenda a totalidade da filosofia, ela terá uma matéria organizada de uma certa forma, tal forma deverá expressar a finalidade mesma da filosofia enquanto tal. Enquanto matéria a filosofia é mito, análise ou história. A forma da definição é a contemplação que visa à glória do espírito humano. Porém, o ser humano contempla de diversas formas, de modo que deve haver alguma diferença peculiar na contemplação filosófica. Pois bem, a filosofia enquanto atividade contemplativa é um mito que expressa a nossa ignorância frente aos conhecimentos divinos, ou a análise que visa esclarecer as conseqüências das nossas limitações, ou ainda a história que pretende explicar o que sabemos sobre aquilo que nos falta e nos constitui.

Donde a tarefa da filosofia é manter o mistério que nos constitui intacto. Sempre que existirem perguntas, a filosofia estará. Sempre que existir humanidade, existirão perguntas. Somos a sombra do que nos escapa. A filosofia é a empresa que legitima nosso desejo pelo conhecimento. Ela é responsável por sempre nos lembrar que somos seres essencialmente ignorantes.

A filosofia é inevitável, a astrologia não. Se a filosofia é um mito, então é um mito essencial. Um mito que traduz a natureza mesma do ser humano. É o mito da incompletude.

[11] Fazer filosofia é...

Viver obsessivamente da insatisfação. É estar constantemente alimentando a compulsão pelo pensamento; e expandir os limites da imaginação. É transformar a realidade através do pensamento; e expressar a perplexidade pela contemplação.

Fazer filosofia é ter consciência que a ignorância que nos constitui; e perceber que os problemas sempre podem ser recolocados; é saber que somos humanos e que o conhecimento que podemos ter é humano.

A filosofia é um habito; um estado de espírito; um eco do inconsciente.

É a vontade racional de empreender da busca das condições de conceptibilidade.

É um desejo de transbordar, ir além do limite; distinguir e significar.

É viver no flerte com o impossível [ato da criatividade livre que ordena o diverso das possibilidades].

A filosofia um passo na sombra inevitável.

Nesses termos, fico me perguntando - seria razoável dizer que a filosofia morreu? Parece perfeitamente aceitável que a filosofia é de todo uma tarefa absolutamente inútil, i. e., ela não nos oferece nenhum benefício utilitário. Não cura doenças, não constrói pontes ou cria bombas. A despeito disto quem estaria disposto a aceitar que estamos satisfeitos?

Eu não conheço ninguém que não acorda todas as manhas ou perplexo ou indiferente. Aquele que acorda indiferente não sabe que perdeu o frescor da vida; morreu para a infinidade de possibilidades que se afiguram no “Eu penso”. Ele “sabe” tudo e não tem por que continuar. Já aquele que acorda perplexo busca a vivacidade em todos os momentos; sabe que cada instante é infinitamente complexo, e se apercebe que enquanto acorda o mundo inteiro acontece; quer estar em todos os lugares; quer aprender todas as línguas e falar por todas as bocas, quer ouvir todas as palavras e não deixar nada passar. O perplexo sabe que tudo é fugaz e que nada resta; sabe que existe algo que escapa. Ele vive todos os momentos pensando em como tudo isso é possível, pensando nas possibilidades ilimitadas do pensamento, do ser e da realidade.

O indiferente é aquele que está bem acomodado com as suas crenças. Em contrapartida o perplexo é aquele que mesmo cônscio da morte, mesmo cônscio do mistério, está sempre pronto a transbordar. O incognoscível constitui o perplexo. O perplexo constitui o insatisfeito. O insatisfeito constitui o filósofo.

Enquanto ainda existirem razões para a perplexidade, existirão pessoas dispostas a filosofar.