A provocação foi aceita. Afinal, quando se crê ter armas para o combate e quando há gozo mesmo na derrota, fica difícil levar o tapa e dar-se por contente.
Devo encarar a provocação do Ad, não como exclusivamente sua, pois como se diz na Antigona, no momento que o rei sabe da desobediência da jovem: Não devemos confundir as más notícias com o mensageiro.
Devo tentar desfazer a armadilha que Wittgenstein fez à psicanálise e tenho poucos recursos para isso. Em primeiro lugar, não sei até onde mais ia seu argumento contra a psicanálise. Também devo dizer que uma ferramenta que posso me valer é dos argumentos ulteriores da psicanálise – ou seja, aqueles que Freud não chegou a levar a diante.
Dito isso, vejamos o que nos diz Wittgenstein:
"Freud refers to various ancient myths in these connections [dreams], and claims that his researches have now explained how it came about that anybody should think or propound a myth of that sort. Whereas in fact Freud has done something different. He has not given a scientific explanation of an ancient myth. What he has done is to propound a new myth. The attractiveness of the suggestion, for instance, that all anxiety is a repetition of a anxiety of the bird trauma is just the attractiveness of mythology. 'It is all the outcome of something which happened long ago'. Almost like referring to a totem. Much the same could be said of the notion of an Urzene [ou 'cena primordial']. This often has the attractiveness of giving a sort of tragic pattern to one's life. It is all the repetition of the same pattern which was settled long ago. Like a tragic figure carrying out the decrees under which the fates had placed him at birth. Many people have, at some period, serios trouble in their lives - so serious as to lead to thoughts of suicide. This is likely to appear to one as something nasty, as a situation too foul to be a subject for tragedy. And it may then be an immense relief if it can be shown that one's life has the pattern rather of a tragedy - the tragic working out and repetition of a pattern which was determined by the primal scene." (L. Wittgenstein, 'Conversation on Freud' in 'Lectures and Conversations on Aesthetics', Psychology and Religious Belief, p. 51).
É verdade que Freud propõe um outro mito e que sua explicação dos mitos como reinveções de um mito primordial não respodenria de forma direta o que são mitos. O problema de objetar isso à Freud é que Freud não tem elementos para dizer o que deve dizer, o que ele tenta comunicar é que os mitos são formações psíquicas e não tentativas de explicação com valor de verdade. Freud sabe que não diz nada novo quanto aos mitos; o que ele faz é situar onde na vida da alma humana devemos fazer a compreensão dos mitos.
Ao propor um novo mito Freud buscou caracterizar dentro de suas referências culturais (fundamentalmente clássicas) o que corresponderia àos processos psiquicos que logogênese e psicogênese. Tentou demontrar que o peso da lei que o próprio Édipo faz cair sob seus olhos é o mesmo peso que tem para o psiquismo adquirir os limites da linguagem, o pai da psicanálise queria dizer que assim como o cumprimento de um designio liberta, a lógica e a linguagem libertam, pois o primeiro ordena o mundo e a segunda, remete o mundo. Em suma, Freud propõe um mito como metáfora, ele não pede que creiam nesse mito. É por isso que a psicanálise é para todos e mesmo aqueles que tem sérios problemas com a psicanálise podem completar seu tratamento sem jamais crer na psicanálise. (A transferência é com o analista, não com o modo de tratamento)
Os usos dos mitos são muitos: Podemos falar deles, mas falar dos mitos como atrativos ou como coisas curiosas é somente uma possibilidade de fazer uso dessas historietas. Há os que creem nos mitos, mas crer nesses mitos hoje em dia parece tão descabido quanto parecia aos gregos antigos (Acreditavam os Gregos nos seus mitos, Paul Veyne). Contudo, há uma outra utilização, a da psicanálise. A utilização dos mitos e da tragédia nela é metafórica. (agradeço a oportunidade de dizer isso publicamente, Ad), mas metáforas não são meramente figuras de linguagem. Metáforas são formas de dar a entender, dizer tudo dizendo pouco. É algo necessário nas nossas vidas. O peso dramático de uma vida pode estar resolvido ou resumido em um jogo de palavras e tornar o peso de viver até mesmo num chiste – desses chistes onde rir é fundamentalmente aprender. Crer num mito, assim como crêr numa cena primordial é possivelmente uma das formas de compreender sua finitude, a finitude de sua linguagem e do próprio corpo. É com base na compreensão da nossa incompletude que nos alçamos a aceitar a antiguidade do mundo. A teoria da psicanálise tentar demonstrar através dos mitos que antes é verdadeiro que o mundo nasce em nós, que é verdadeiro sermos criadores do mundo. Entretanto, diferentemente da razão, que dá a mesma lição porém com a crença de que a verdade é o que torna os homens sabedores dessas distinções, os mitos mostram que há desejos que nascem a partir do momento que a ruptura, homem x mundo se faz. O quanto essa ruptura se faz e de qual forma, não é minha intenção debater. Em outras palavras, o mito é a formação psiquica que nos avisa da nossa incompletude de ser existente e que nos dá, mediante o reconhecimento da incompletude, a feliz informação de que ainda que incompletos há um mundo com uma certa ordem onde podemos pinçar pedaços daquilo que pensávamos ser. (heróis, gênios, pessoas boas, pessoas desejadas, enfim, toda sorte de criações humanas nas quais encontramos algum alento).
Ainda que os estudos de mitos estivessem ocorrendo ao mesmo tempo que Wittgenstein desenvolvia sua obra, o que torna gênio contemporâneos incomunicáveis, se wittgenstein estivesse vivo, eu perguntaria à ele, com todo respeito que ele merece: por que não aceitar essas razões, tio Witt?