22/12/2010

A inevitabilidade da filosofia

[1] Introdução e objetivos

É discutível se preciso saber o que estou fazendo para poder saber como fazer bem.

Ora, visto que a virtude se adquire pelo hábito, i. e., a constância de uma atividade gera sua perfeição, [de modo que o que distingue o músico do músico virtuoso é a quantidade e a qualidade das notas tocou durante toda a vida]; parece inescapável a pergunta “Como?”, i.e., como eu devo agir para desempenhar virtuosamente minha atividade?, i.e., como os dedos devem se movimentar para gerar boa filosofia?

A despeito disto, parece absolutamente razoável que descobrindo o que exatamente é isto que deve ser feito a tarefa de como fazê-lo torna-se muito mais fácil. Qualquer um está disposto a aceitar sem muitas dificuldades que para poder explicar propriamente como algo deve ser feito, devemos antes saber o que é esse algo que deve ser feito de tal e tal modo. Assim, parece inegável que a tarefa de explicar o ser de algo é anterior a tarefa de explicar como fazê-lo para ser aquilo que é. De modo que falar como algo deve ser feito sem saber o que é que se está fazendo é um exercício - de todo - cego. Assim, se posso falar que o que estou buscando é algum tipo de iluminação sobre como devo fazer filosofia, é inegavelmente anterior a pergunta - “O que é a filosofia?”.

A filosofia não se define, tal qual a ciência, pelo estudo de um objeto específico. Ela não descreve nem explica os efeitos das coisas no mundo, tampouco é um estudo da razão pura argumentando em favor de verdades incondicionadas. A despeito disto, [] fico me perguntando - qual o significado do termo “A filosofia”? Será possível apresentar uma explicação que responda pela definição essencial do que quer que ela seja? Não haveria de certo um ponto de foco que toda filosofia retiraria sua inteligibilidade?

[2] Busca pelos critérios da definição: Matéria e Forma

Parece de todo inegável que o que quer que seja a filosofia em si mesma o seu exercício demanda leitura e escrita de textos. Somos levados por um ritmo peculiar de ordenar as palavras, e, com o hábito aprendemos a analisá-las em busca dos seus significados e possibilidades. Através da filosofia aprendemos a história do pensamento ocidental em seus mais diversos desdobramentos, de modo que não é de todo absurdo supor que ela é um ramo especifico da história do conhecimento. No limite podemos dizer que ela não é nada além de um mito criado pela engenhosidade da razão pura.

Qualquer uma das caracterizações acima parece profundamente significativa do que seja a filosofia, i. e., cada uma apresenta uma explicação do fazer filosófico. Ouso afirmar que todas apreendem aspectos necessários de uma concepção completa de filosofia, seja histórica, seja analítica, seja mítica. Porém, imagino que nenhuma corresponda à explicação essencial do que seja a filosofia. Encontrar o que corresponde à natureza da filosofia [se é que é possível falar disto] é descobrir o que é que faz com que tenhamos que ler e escrever; analisar; estudar a história do conhecimento humano e no limite que possamos argumentar engenhosamente contra a própria legitimidade da filosofia.

O que causa a filosofia? Seja o que for para uma definição completa tal causa deverá ser tanto necessária quanto suficiente. Pois, conceber a filosofia como um mito ou como história do conhecimento não pode ser dito da filosofia sem mais, mas apenas filosofia de tal e tal tipo. De modo que o que procuro é uma explicação que seja capaz de dar conta dos efeitos gerados pelo fazer filosófico constante.

Se é possível conceber a filosofia como uma empresa analítica, histórica ou mítica, então o que procuro é algo que possa dar conta de unificar todas essas caracterizações sob o foco de uma explicação. O que faz com que essas concepções sejam filosóficas? Tal questão pode começar a se esclarecer se percebermos que uma diferença precisa ser adicionada na explicação essencial da filosofia. Tal diferença corresponde à forma peculiar que um discurso deve ser ordenado a fim de ser filosófico. É por estar de tal e tal modo disposto que o mito ou a análise podem ser ditos filosóficos. Assim, uma dada matéria mítica ou histórica só é filosofia se a sua estrutura inteligível for filosófica. Mas, o que distingue um mito filosófico de um mito normal? O que faz com que uma análise seja filosófica e não puramente lógica? O que torna peculiar a história da filosofia?

Seja o que for, para explicar o que é a filosofia, devemos descobrir o que distingue um texto filosófico de um texto literário. Pois uma definição do que é filosofia deverá ser algo do tipo “mito contado em vista de tais e tais propósitos filosóficos” ou “análise feita com objetivo de esclarecer tais e tais assuntos filosóficos”. De modo que falta explicar exatamente o que são esses propósitos ou assuntos filosóficos que respondem pela diferença, i. e., pela forma atualizada de um discurso filosófico.

[3] função positiva: teleologia e contemplação

Responder teleologicamente o que causa a filosofia, i.e., responder qual a sua finalidade, pode parecer um assunto embaraçoso. No entanto é justamente no seio de tal embaraço que pretendo recolher algumas informações cruciais para o desenvolvimento do argumento. O que a filosofia visa? Qual o propósito de se fazer filosofia? Por que nós não podemos relegá-la ao porão do conhecimento [junto com tudo aquilo que não nos importa mais]?

É lugar comum que a filosofia é de todo uma tarefa inútil, i. e., ela não produz resultados práticos como a cura de uma doença ou a criação de um computador [digamos que a filosofia pode até contribuir para tal, porém, não enquanto filosofia]. A filosofia enquanto filosofia não deve, nem pode servir para coisa alguma que não a pura e simples contemplação. E neste sentido a filosofia não se distingue em nada da física e da matemática puras, tampouco da arte. Todos esses ramos do conhecimento visam em última análise, a satisfação de um desejo intrínseco do ser humano, um desejo que constitui o ser humano [abordarei mais sobre tal desejo no próximo ponto]. Assim, a filosofia visa à satisfação de um desejo. Neste sentido, a satisfação gerada por fazer filosofia se assemelha a satisfação gerada pela contemplação de um pôr-do-sol ou do céu em uma noite estrelada. E a satisfação gerada, seja por contemplar um Pollock, seja por ver a beleza da prova de um teorema matemático, seja por fazer filosofia, são todas de um mesmo gênero [o gênero das coisas que glorificam o espírito humano]. De modo que, em última análise, fazer filosofia, bem como arte e etc, são formas de completar algo que nos falta, i. e., satisfazer um desejo. Buscar meios de suprir tal falta, como forma de elevar o espírito humano as alturas, deve também ser tarefa da filosofia. De sorte que o único “produto” gerado pela filosofia é, num certo sentido, pessoal e intrínseco a própria atividade. Em uns ela gera paz de espírito, em outro produz cada vez mais material para perplexidades.

Porém, apesar de caracterizar a filosofia [juntamente com outras atividades] como uma atividade que visa à glória do espírito humano através da contemplação, a despeito desta condição necessária, tal caracterização positiva do que é a filosofia não é suficiente para defini-la, visto que ela se confundiria com coisas como Pollock ou o teorema de Godel.

Assim, falando abstratamente a filosofia satisfaz um desejo e enquanto atividade pode ser caracterizada positivamente como um meio para alcançar um determinado fim que constitui o homem enquanto homem. Porém, qual é esse fim, i.e., qual exatamente é esse desejo que é próprio do homem? Talvez uma melhor precisão do que quero dizer por desejo do homem enquanto homem possa trazer alguma luz a respeito do que distingue a filosofia das demais atividades que satisfazem tal desejo.

[4] O desejo de conhecer

O desejo é, em última análise, aquilo que está por trás de qualquer atividade. De modo que tudo que fazemos visa em alguma medida à satisfação de um desejo. O desejo é forma da ação; é ele que explica qual a finalidade de se fazer tal e tal coisa. Assim, parece evidente que nos movemos por nossos desejos, i. e., agimos com vistas a sua satisfação, i. e., somos naturalmente tentados a buscar aquilo que nos plenifica. Disto segue-se que a faculdade desiderativa é a marca característica dos seres imperfeitos. Nós desejamos apenas na medida do que nos falta. Ninguém deseja algo que julga não precisar, tampouco aquilo que não vá trazer algum tipo de satisfação com a sua realização.

Tomando por base a definição canônica de homem, [a saber, animal racional,] é possível fazer uma distinção entre os tipos de desejos pertinentes ao homem. De um lado temos os desejos derivados da animalidade como beber, comer, fazer sexo e etc. Do outro temos desejos relativos à racionalidade como agir bem, ser feliz ou conhecer a nós mesmos e o mundo.

Sem entrar em muitos detalhes defendo que o conhecimento é condição de possibilidade para felicidade e para agir bem, pelo menos no sentido de que é impossível alguém ser verdadeiramente feliz sem agir bem, e agir bem é fazer o melhor que se pode com as contingências que a vida nos impõe. Assim, aquele que sabe qual é a melhor coisa a se fazer, necessariamente conhece algo, sejam suas limitações, sejam suas potencialidades. De modo que conhecer é condição para bem agir e bem viver. Portanto, o desejo do homem pelo conhecimento é condição para conceber todos os outros desejos racionais.

Donde é possível dizer que todo homem enquanto animal busca os prazeres corporais, a vida e a reprodução. De outro lado todo ser humano enquanto racional busca necessariamente o conhecimento. A busca pelo conhecimento constitui a essência do ser humano, visto que a racionalidade distingue o ser humano dos demais animais. Portanto, digo que somos seres essencialmente ignorantes visando o conhecimento. Somos afeitos ao conhecimento, seres conscientes de que algo nos escapa, de que algo nos falta, seres que desejam a completude, seres que desejam suprir a carência que nos constitui.

Abstratamente falando a filosofia é uma forma de satisfazer o desejo do homem pelo conhecimento. Sob um aspecto ela é uma atividade que visa elevar o espírito humano, ela busca suprir a carência deste algo que nos falta e nos constitui. Se a filosofia é capaz de responder as questões mais fundamentais a cerca de nós mesmos e do mundo, então ela é a única empresa que verdadeiramente satisfaz o desejo do homem pelo conhecimento.

[5] primeira síntese e conclusões preliminares

De modo geral até o momento ter apresentado os seguintes argumentos:

P1. A filosofia enquanto matéria é história, análise ou mito.

P2. Para uma definição completa tal matéria deve possuir uma forma que a distinga.

P3. A forma será dada pela finalidade da filosofia.

P4. Por ser uma atividade que não visa um produto, i. e., tem valor intrínseco, a filosofia visa a glória do espírito humano através da contemplação. [finalidade positiva]

P6. Isto é compartilhado com outras atividades.

P6. Os seres humanos desejam o conhecimento.

C.1 Seja o que for que distinga a filosofia ela deve ser relativa ao desejo do ser humano pelo conhecimento. Tal atividade deve ser contemplativa com vistas à glória do espírito humano, i.e., deve ele satisfazer de algum modo o desejo do ser humano pelo conhecimento.

P7. Desejamos nos completar.

P8. A falta constitui nosso desejo.

P9. O desejo constitui a racionalidade.

C.2. A filosofia trata do que nos constitui. [i.e., do que nos falta]

[6] Dos limites do conhecimento

Muito da filosofia se fez na busca pelas condições de conceptibilidade. A pretensão metafísica, que sempre foi à tarefa filosófica por excelência, era o desejo de empreender na busca pelas condições necessárias e suficientes para o ser absolutamente geral. No processo de vir a ser da filosofia nós nos deparamos com as condições do pensamento. Até um dado momento a filosofia era a responsável por encontrar tais limites e extrair o máximo de coisas que se lhes decorressem. Ressalto dois dos mais importantes limites que o pensamento, e, conseqüentemente o conhecimento humano estão sujeitos, a saber, o princípio de não contradição e a impossibilidade de conhecer as coisas em si mesmas.

O importante é perceber que os limites da razão geram conseqüências drásticas para a legitimidade do desejo pelo conhecimento. Se o objeto da filosofia é impossível, a saber, conhecer as coisas nelas mesmas, então resta apenas à ciência. Nesse caso a filosofia enquanto empresa que satisfaz o desejo pelo conhecimento não passa de pura ilusão. Ela seria uma atividade assemelhada com a arte e a religião, i. e., seria apenas um modo de preencher o vazio das coisas inexprimíveis que estão além da nossa capacidade de entender. Seria a filosofia apenas um mito? Seria possível a satisfação do desejo pelo conhecimento? Pretender conhecer seria o mesmo que pretender voar, i.e., algo impossível para nós?

[6.1] princípio de não contradição

Eu não conheço ninguém razoável que tente negar o princípio de não contradição. Quanto o Filósofo formulou [nos tempos da ainda “viva” filosofia] como - algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto – imaginava-se que era um primeiro princípio, algo da realidade fundamental do ser enquanto ser.

Os primeiros princípios eram considerados os limites da realidade possível, i.e., condição de possibilidade para existência. O mundo era algo considerado dado, nosso trabalho passava por tentar entender a realidade última desse mundo que nos é de todo acessível. Assim, as condições de conceptibilidade do mundo eram idênticas as do pensamento, sendo considerados primeiros princípios da realidade. De modo que o princípio de não contradição afigurava-se na base da estrutura inteligível da realidade.

[6.2] impossibilidade de conhecer a coisa em si

Só podemos conhecer as coisas pelo modo que nos é dado a conhecê-las. Quando o Crítico demonstrou que só podemos conhecer os fenômenos e que é impossível conhecer as coisas nelas mesmas, ele enterrou a possibilidade da metafísica. O princípio de não contradição deixou de ser entendido como um princípio fundamental da realidade do ser. Ao passo que se tornou apenas um mecanismo por meio do qual pensamos os objetos. Perdendo assim seu estatuto ontológico e sendo “rebaixado” a um princípio lógico/epistêmico. A filosofia perdeu a possibilidade de legitimar-se a si mesma quando deixou escapar a coisa em si por entre os dedos. A razão não é capaz de garantir a correta aplicação dos seus princípios próprios de funcionamento para as coisas nelas mesmas. Donde se segue que a pergunta - “o que é a filosofia?” torna-se uma pergunta problemática. A outrora rainha das ciências da noite para o dia perdeu a autoridade do seu império. Nesses termos, a filosofia seria apenas um mito?

[6.3] O mito

Os mitos servem para atribuir significação. Considero-os como que romances de formação, i. e., o produto da consciência humana que visa formar uma concepção da realidade. Os mitos pretendem dar uma explicação sobre as causas do mundo [para o ser das coisas]. Através dos mitos o homem se constitui enquanto ser consciente de si e do outro. Percebe o seu lugar no tempo e no espaço.

O mito da filosofia é criado quando percebemos que a razão é incapaz de legitimar a sua própria pretensão de conhecer incondicionalmente as coisas. Se só podemos conhecer as coisas pelo modo mesmo como pensamos e, o modo mesmo como pensamos não garante acesso as coisas sem mais, então não podemos conhecer as coisas sem mais, mas somente do modo como pensamos. Nesse caso, a crença na razão pura enquanto provedora de conhecimentos necessários e universais não passa de um mito criado pela própria razão.

[7] o mito e a glória das aparências

Possivelmente a filosofia tal qual nós a conhecemos seja verdadeiramente um mito. Talvez crer na razão não passa de um puro ato da fé. A busca por verdades incondicionadas podem ter mostrado ao espírito humano suas limitações necessárias. Não há escapatória ao princípio de não contradição, tampouco somos capazes de conhecer as coisas nelas mesmas. O princípio de não contradição é a forma básica do pensamento, é impossível pretender pensar em algo que não esteja de acordo com a sua limitação. Do mesmo modo nossa capacidade de pensar as coisas passa pelo modo mesmo com as pensamos. É inaceitável que possamos conceber algo contraditório, porém, é perfeitamente possível que exista o inconcebível. O modo mesmo como nós necessariamente pensamos, não garante nada do que em si mesmas as coisas necessariamente são.

Assim, a filosofia conhecer [por meio da razão] as coisas nelas mesmas. Se o acesso as coisas nelas mesmas é impossível, então somos capazes apenas de conhecer os fenômenos enquanto nos aparecem. A ciência conhece através dos fenômenos. Se a ciência só é capaz de descrever fenômenos e ela é o meio pelo qual conhecemos, então podemos ter apenas segurança das aparências.

A ciência prova como as coisas nos aparecem. Através da manipulação dos efeitos dos fenômenos sobre a nossa capacidade de representação nós criamos máquinas, curamos doenças, fazemos guerras. Vamos descobrindo meios para tornar nossa vida melhor, aumentando nossas perspectivas, alargando nosso espírito e alimentando nosso desejo pelo conhecimento.

A despeito disto, onde estaria a glória da filosofia? Haveria algum lugar para ela fora do porão das quinquilharias do conhecimento?

[8]. O que falta que nos constitui?


Somos; seres cônscios da própria morte.

Obras inacabadas de nós mesmos

Vivendo na sombra do que nos escapa.


De um lado, desejamos o conhecimento do ser;

Doutro, sabemos que [mais que tudo]

Queremos o que não podemos conhecer.


Inquietos... – [com as relações].

Intolerantes... - [com o efeito da gravidade].

Insatisfeitos... – [com nosso time de futebol].


Não obstante, desejamos tão intensamente o incognoscível...

- seres essencialmente ignorantes; Nós

Que somos cônscios da própria vida.


[9] função negativa: legitimar a carência

Até o momento falei do desejo pelo conhecimento em seu caráter positivo, porém há uma contrapartida desse caráter positivo, i. e., se desejamos o conhecimento é por que não o possuímos. A filosofia é a empresa humana que visa à contemplação pela glória da humanidade, ela tem uma função positiva compartilhada com outras atividades, porém, seria possível pensar em alguma função negativa que pudesse a distinguir das demais atividades contemplativas?

A história da humanidade é a história de pessoas que buscaram aquilo lhes escapa. Somos seres essencialmente carentes de algo. Somos seres essencialmente finitos e limitados. Porém, desejamos entender; desejamos nos completar; desejamos os infinitos.

A filosofia trabalha com os limites, com as carências. A filosofia como função negativa, tem o papel de mostrar que somos imperfeitos, que somos desejosos de algo que nos falta e que essa falta nos constitui. A filosofia é responsável por nunca nos esquecermos da nossa ignorância, que é ela que em última análise nos move e motiva. Desejamos o conhecimento por que somos essencialmente ignorantes. Desejamos o conhecimento por que algo nos falta. Assim, a filosofia enquanto função negativa é responsável por sempre nos lembrar que somos humanos e o conhecimento que podemos ter é apenas humano, i.e., somos seres imperfeitos e limitados.

A filosofia se distingue das demais atividades contemplativas, pois ela é a única que responde verdadeiramente por nossos limites. A filosofia busca o que não podemos conhecer, para que deste modo libertemo-nos da pretensão de que podemos ser deuses. De modo que de posse daquilo que não podemos saber, estejamos mais verdadeiramente prontos para assumir aquilo que somos. Ela se distingue por buscar em nosso pensamento as condições para que possamos pensar, i. e., as condições para que possamos conhecer.

Assim, é a única atividade que retira sua distinção daquilo mesmo que nos falta e nos constitui. E é sua a tarefa de sempre nos lembrar que em última análise nós somos essencialmente humanos. Nesse caso, a filosofia é a guardiã do limite, ela legitima o nosso desejo pelo conhecimento garantindo que nunca deixaremos de ser seres imperfeitos.

[10]. Segunda síntese e conclusões

Com a última peça do argumento fornecida pela função negativa da filosofia é possível vislumbrar uma definição que compreenda a totalidade da filosofia, ela terá uma matéria organizada de uma certa forma, tal forma deverá expressar a finalidade mesma da filosofia enquanto tal. Enquanto matéria a filosofia é mito, análise ou história. A forma da definição é a contemplação que visa à glória do espírito humano. Porém, o ser humano contempla de diversas formas, de modo que deve haver alguma diferença peculiar na contemplação filosófica. Pois bem, a filosofia enquanto atividade contemplativa é um mito que expressa a nossa ignorância frente aos conhecimentos divinos, ou a análise que visa esclarecer as conseqüências das nossas limitações, ou ainda a história que pretende explicar o que sabemos sobre aquilo que nos falta e nos constitui.

Donde a tarefa da filosofia é manter o mistério que nos constitui intacto. Sempre que existirem perguntas, a filosofia estará. Sempre que existir humanidade, existirão perguntas. Somos a sombra do que nos escapa. A filosofia é a empresa que legitima nosso desejo pelo conhecimento. Ela é responsável por sempre nos lembrar que somos seres essencialmente ignorantes.

A filosofia é inevitável, a astrologia não. Se a filosofia é um mito, então é um mito essencial. Um mito que traduz a natureza mesma do ser humano. É o mito da incompletude.

[11] Fazer filosofia é...

Viver obsessivamente da insatisfação. É estar constantemente alimentando a compulsão pelo pensamento; e expandir os limites da imaginação. É transformar a realidade através do pensamento; e expressar a perplexidade pela contemplação.

Fazer filosofia é ter consciência que a ignorância que nos constitui; e perceber que os problemas sempre podem ser recolocados; é saber que somos humanos e que o conhecimento que podemos ter é humano.

A filosofia é um habito; um estado de espírito; um eco do inconsciente.

É a vontade racional de empreender da busca das condições de conceptibilidade.

É um desejo de transbordar, ir além do limite; distinguir e significar.

É viver no flerte com o impossível [ato da criatividade livre que ordena o diverso das possibilidades].

A filosofia um passo na sombra inevitável.

Nesses termos, fico me perguntando - seria razoável dizer que a filosofia morreu? Parece perfeitamente aceitável que a filosofia é de todo uma tarefa absolutamente inútil, i. e., ela não nos oferece nenhum benefício utilitário. Não cura doenças, não constrói pontes ou cria bombas. A despeito disto quem estaria disposto a aceitar que estamos satisfeitos?

Eu não conheço ninguém que não acorda todas as manhas ou perplexo ou indiferente. Aquele que acorda indiferente não sabe que perdeu o frescor da vida; morreu para a infinidade de possibilidades que se afiguram no “Eu penso”. Ele “sabe” tudo e não tem por que continuar. Já aquele que acorda perplexo busca a vivacidade em todos os momentos; sabe que cada instante é infinitamente complexo, e se apercebe que enquanto acorda o mundo inteiro acontece; quer estar em todos os lugares; quer aprender todas as línguas e falar por todas as bocas, quer ouvir todas as palavras e não deixar nada passar. O perplexo sabe que tudo é fugaz e que nada resta; sabe que existe algo que escapa. Ele vive todos os momentos pensando em como tudo isso é possível, pensando nas possibilidades ilimitadas do pensamento, do ser e da realidade.

O indiferente é aquele que está bem acomodado com as suas crenças. Em contrapartida o perplexo é aquele que mesmo cônscio da morte, mesmo cônscio do mistério, está sempre pronto a transbordar. O incognoscível constitui o perplexo. O perplexo constitui o insatisfeito. O insatisfeito constitui o filósofo.

Enquanto ainda existirem razões para a perplexidade, existirão pessoas dispostas a filosofar.

4 commentaires:

  1. gostei. e que legal que fica em aberto pra que se pense no quão aplicável e útil é a filosofia; bem dizia o nietzsche 'as convicções são mais inimigas da verdade do que as mentiras'.

    que fique registrado que a construção foi suada, mas valeu a pena :)

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  2. Muito original o teu texto Cassio! Gostei. Sinal disso é que nele vejo muito assunto para futuras conversas. Não caberia tudo aqui. Vou só fazer algumas observações.

    Dizes: "A filosofia enquanto filosofia não deve, nem pode servir para coisa alguma que não a pura e simples contemplação". Isso tudo é muito aristotélico para poder ser um lugar comum. O contemplar é uma tarefa passiva. A passagem de um contemplar passivo a um investigar ativo não só afetou a história da ciência como, penso, também da filosofia (a partir dos modernos). A filosofia pode, portanto, historicamente servir para mais que pura contemplação. Este mais talvez seja mesmo um desejo. Mas não necessariamente um desejo do tipo aristotélico, que reduz a filosofia a um tipo de contemplação como a contemplação do por do sol. Como já exprimi outras vezes, acho que a filosofia pode possuir um objetivo prático. A filosofia nos leva a pensar melhor (não meramente através de um contemplar o mundo, mas de um investigar se não o mundo - tarefa da ciência - ao menos o nosso próprio pensamento), e, por isso nos leva (ou pode levar) a um agir melhor (visto que o homem age muitas vezes em função do que pensa).

    Mas se isso pode parecer semelhante ao que escreveste em algum momento no teu texto, quero ressaltar que meu ponto não pode absolutamente passar por um "desejo de conhecer". E isto esconde as profundas diferenças que podem estar veladas por trás das palavras que nós dois usamos, como este "agir melhor". O que se conhece com a filosofia? Se o homem deseja essencialmente conhecer, então ele deveria fazer ciência e não filosofia. Se o homem deseja essencialmente conhecer, a arte não poderia nem mesmo ser uma atividade humana, ou no máximo é uma atividade de valor secundário. O que se pretende conhecer com a arte? Eu quero crer que há uma arte intrinsecamente humana (talvez a mais bela de todas) que não pode ser explicada por um desejo de conhecer. O maior enciclopedista do mundo não satisfaz mais um desejo essencialmente humano que um bêbado pintor de quadros perdido nas ruas da Nova York de 1950. Por que preciso assumir que fazer filosofia é satisfazer um desejo de conhecimento das coisas em si? Se fosse assim, depois de Kant, iria criar galinhas! Penso que não há sentido em buscar na definição aristotélica de homem a função da filosofia (sei que tu gostas de Aristóteles, mas realmente não dá :) ). Esta definição é, no meu entender, incompleta, muito restritiva e completamente ineficaz para se tratar do argumento sobre a inevitabilidade da filosofia. O que nos distingue dos animais não pode ser só a razão (algo geral e universal pertencente a todos os homens).

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  3. Vou escrever aqui de modo frouxo, sem compromisso, deve haver algo que caracteriza o homem e que está antes da razão: creio ser algo associado a este vazio, este gap entre nossas representações e nossos juízos, de onde emergem os juízos morais e estéticos: juízos de aplicabilidade particular e nunca universal. A razão, a tendência a universalizações, é somente uma das consequencias da possibilidade de julgar. O que caracteriza o homem está antes, está na condição de possibilidade da razão. Talvez Wittgenstein esteja certo e nada mais disso se possa falar. Entretanto, penso que nisto reside algo que viola fortemente a definição aristotélica de homem (até porque ela deveria ser entendida necessariamente fora de um sistema metafísico do tipo "formas" e "matérias" onde o fator responsável pela individuação do homem (a matéria) não se encontra naquilo que se usa para justificar a filosofia (a forma) ). Com isso quero dizer o seguinte: como não há sentido em buscar O belo universal , ou O bom universal (palestra do Paulo), também não há sentido em buscar pela essência geral do homem (quem julga o belo e o bom). Se pretendemos restringir o argumento sobre o valor da filosofia como sendo sustentado em algo que há de comum entre todos nós, um "desejo de conhecer", seja lá o que isto pode significar, não só não encontraremos valor algum para a filosofia, no meu entender, como junto com a filosofia implodiremos também a possibilidade e o valor da arte (valor superior, no meu entender, a qualquer conhecimento).

    Tudo isto é só o meu modo de vista, escrito de modo frouxo e descompromissado, para intensificar o debate. Eu quero procurar uma solução pelo valor da filosofia não de dentro de alguma tradição filosófica, mas justamente na pluralidade e multiplicidade de tradições filosóficas. Do mesmo modo que o valor da arte estaria na pluralidade e irredutibilidade das obras de arte, no caráter individual e particular que faz um Pollock ser um Pollock, um Italo Calvino ser um Italo Calvino. A filosofia pode também ser vista como um tipo de arte. Mas daquele tipo que nos faz pensar e (por vezes) agir melhor (e não necessariamente pintar melhor, escrever melhor, cantar melhor,...). E neste sentido estudamos modernos, kantianos, hegelianos como se estudam impressionistas, expressionistas, surrealisstas: a análise de obras filosóficas, cada uma delas, em sua particularidade, nos faz pensar melhor como indivíduos e, como indivíduos únicos e irredutíveis a qualquer definição, agir em busca do que pensamos ser o bom e o belo.

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  4. Mas continuamos depois...

    Abraço!!

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