26/12/2010

O que você come quando come uma maçã?


As Categorias e o Objeto que é visto.

Buscarei fazer uma breve apresentação do conceito kantiano de imaginação valendo-me do texto de “The Role of the imagination in Kant’s theory of experience” de Sellars e do conhecimento acumulado ao longo do semestre com a leitura da Crítica da Razão Pura. A questão que buscarei abordar é escolhida por mim para mero exercício de revisão e também por que acredito ser possível de abordar dado pequeno tamanho do texto: Qual o papel que jogam os conceitos puros do entendimento (as categorias) no entendimento do “objeto que é visto”?
               
1.       Distinções
Para Wilfrid Sellars há uma série de distinções fundamentais que devem ser feitas no tocante à intuição empírica. Uma intuição é, para Kant, uma representação imediata de um objeto singular. Essa forma de representação é obtida através da sensibilidade, ou seja, da nossa forma de receptividade de dados sensíveis, e, nesse caso, a intuição é aquilo que nos é apresentado daquilo que foi recebido pela sensibilidade. As formas puras da intuição são o espaço e o tempo. Chamamos de puras por que são condições para intuição de qualquer objeto empírico. Essas são as formas pelas quais objetos são dados à mente humana, por isso chamamos o espaço e tempo de condições da representação dos objetos empíricos. Esse caráter garante que as formas puras da intuição sejam a priori e que sejam aspectos formais da experiência.
Assim, a primeira distinção que podemos fazer se encontra na diferença entre o objeto visto e ato de ver. Esta diferença é resultante do idealismo transcendental kantiano, pois ela se funda da divisão que há no aspecto representativo do objeto que se apresenta na visão e da coisa em si, aquilo que estimula a sensibilidade e gera a representação. O espaço que há entre o primeiro e o segundo exige que pensemos o objeto representado (visto) como algo diferente da sua produção na mente, algo que é função da imaginação produtiva que abordarei posteriormente.
Dada essa diferenciação, podemos falar de outra que trata da apresentação sensória do objeto. Se tomarmos como exemplo a experiência visual, veremos que aquilo que a sensibilidade nos apresenta por meio da intuição é de duas espécies: a. apresenta uma estrutura física complexa b. apresenta uma perspectiva das coisas que são apresentadas.
                Essa distinção é fundamental no entendimento da apresentação da intuição. Ora, na intuição empírica os objetos apresentam-se de acordo com as determinações do tempo e do espaço. Nesse sentido, Sellars diz que elas têm uma estrutura física, pois esse é o mundo físico que conhecemos. Entretanto, no modo como essas estruturas físicas se nos vêm aos olhos os objetos representados nelas não se apresentam na sua completude de perspectivas. Ao caminhar pela rua temos algumas perspectivas sobre os objetos que encontramos, contudo, não os tomamos como incompletos, pois pelo fato de não termos acesso imediato às demais perspectivas, não estamos autorizados a dizer que estas não existem no objeto empírico.
                Isso nos leva próximo a mais uma distinção. Essa, por sua vez, concerne ao ato de perceber. Há um objeto percebido e há um modo como o objeto é percebido. Tradicionalmente essa distinção é compreendida diferenciando o objeto visto e o juízo perceptivo sobre o objeto. Esse juízo é uma crença sobre o que é o objeto e sua construção é análoga à estrutura sintática de uma frase falada. Isso não significa que a construção da frase capaz de expressar a intuição do objeto tenha um demonstrativo, como alguns filósofos compreenderam. Na opinião de Sellars, há uma diferença entre aquilo que é tomado pela percepção e aquilo que se crê sobre o que é tomado pela percepção. Assim, há uma distinção entre aquilo que é fonte do juízo – aquilo que é tomado pela percepção - e o juízo ele mesmo – o que se crê sobre o que se tomou.
               
2.       Experiência e Percepção.
A última distinção da seção anterior é fundamental para iniciar uma discussão sobre o que é a experiência de um objeto no modelo Kantiano. A experiência não é somente a formação de uma intuição que mantenha uma relação com um conceito. Há um determinado modo como esse processo se dá que inclui a formação de crença sobre o que se tomou na intuição empírica e isso é determinante na verdade de qualquer juízo sobre a experiência.
Nessa distinção residem outros problemas para resolver, pois na estrutura de uma simples crença como “o tijolo é laranja” encontra-se uma série de outras crenças implícitas. Essas crenças implícitas são parte de algo maior que a percepção,trata-se de crenças que estão incluídas na experiência. Para tratar disso com mais facilidade utilizaremos o exemplo da maçã. A maçã é tem uma face vermelha por fora que nos é apresentada e no seu interior sabemos que está a carne do fruto que é da cor branca. Entretanto, não vemos o branco, somente acreditamos que no interior da maçã há uma parte branca e isso faz parte da experiência que temos da maçã, não atualmente na percepção, mas através da faculdade de imaginar. Como nos alerta Sellars sobre o branco da maçã, “note-se que dizer que está presente na experiência em virtude de ser imaginado, não significa que está apresentada enquanto imaginada”, ou seja, trata-se de uma distinção fina entre aquilo que é apresentado como existente para o sujeito que percebe enquanto imaginado e aquilo que se apresenta como existente na mera percepção.
Para apresentar os resultados que chegamos até aqui, ninguém melhor que o autor:

“Vemos uma maçã vermelha e gelada. Vemos enquanto vermelha no lado da sua face, no lado oposto, e enquanto contendo um volume de carne branca gelada dentro. Não vemos da maçã seu lado oposto, ou seu interior branco, sua temperatura ou seu suco. Mas enquanto essas características não são vistas, elas não somente acreditas. Essas características estão presentes no objeto de percepção enquanto atualidades; Elas estão presentes em virtude de serem imaginadas.” (21)
3.       A imaginação.
Na crítica da razão pura, Kant apresenta a imaginação no parágrafo 10 como uma função cega de síntese. Essa função é descrita como sendo responsável pela ligação do múltiplo da intuição e sobre ela é legitimo perguntar como se dá a organização do múltiplo, uma vez que ela, uma vez organizada, tem uma ordem espaço temporal e um determinado modo de ocorrer.
Para compreender esses dois aspectos devemos diferenciar dentro do conceito de imaginação duas atividades fundamentais do intelecto: a primeira é chamada de imajar (formar imagens) e a segunda é a conceitualização.
Imajamos estruturas unificadas, onde uma maçã, com um volume interior branco e suculento nos aparece. Criar essa imagem e representá-la na intuição pressupõe uma regra de formação que é executada pelo intelecto através de uma ação unificada. O nome do ato de formar essa imagem específica é guiado por um conceito cuja regra de formação dá-se o nome de maçã.[1]
Como nos diz Sellars, o aspecto sensível e próprio dos objetos é comum à estrutura da imagem e à conceitualização, assim como à crença. Quando pensamos a maçã com sua imagem definida, há tomada do objeto enquanto algo determinado e temos também o conceito que expressa a regra de síntese capaz da formação da intuição através de notas características. A relação do conceito com a intuição não é perspectiva. A intuição se forma através de estruturas imagéticas sensíveis que mostram partes de um objeto, já os conceitos são representações gerais e em nada são perspectivos.
A construção da imagem é realizada a partir do estímulo à retina, feito pelo contato com o objeto e pela adição de crenças e memórias que produzem ou reproduzem o objeto. A imaginação pode ser produtiva ou reprodutiva. A primeira é condição para a segunda, pois só podem ser reproduzidos objetos uma vez produzidos na mente. A imaginação produtiva tem um papel fundamental na construção da estruturação do espaço, pois somente ela é capaz de construir através de uma regra uma imagem que utilize o múltiplo da proveniente da sensibilidade. Essa regra, como já dissemos é dada pelo conceito, contudo, o conceito não fornece a perspectiva pela qual o objeto será construído na intuição. Por essa razão Kant é obrigado a introduzir aquilo que ele chamará de esquema. O esquema de um cachorro é diferente do conceito de cachorro. O esquema de um conceito é o conjunto de modelos de imagens capazes de identificar um conceito para um observador. O exemplo mais simples de Sellars sobre o esquema é a analise de uma observação continuada de uma pirâmide.
“O conceito de uma pirâmide vermelha estando em varias relações com um observador inclui uma família de conceitos pertencentes à sequencias de imagens-modelos perspectivas de alguém que confronta a pirâmide. Essa família pode ser chamada de esquema do conceito de pirâmide.” (33)

Sellars nos faz notar que o esquema da pirâmide não se segue do conceito de pirâmide somente. Ele se segue do complexo conceito de pirâmide em tais e tais relações a um observador. Desse modo, na experiência de um objeto, é que ocorre a ação da imaginação produtiva. A imaginação reprodutiva associa objetos uma vez produzidos. A associação é feita utilizando os esquemas derivados dos conceitos, sintetizando a sensibilidade e o ato do entendimento.

4.       As Categorias e a Imaginação.
Sabemos que a função de síntese do múltiplo da intuição é entendida por Kant como uma ação do entendimento que se dá através de conceitos puros do entendimento que são chamados categorias. Esses conceitos, como dissemos acima, são condições para a experiência de objetos empíricos e sua validade é atribuída aos objetos espaço-temporais no contexto da dedução transcendental.
Quando ocorre a formação de uma intuição empírica, nela já atuam os conceitos puros do entendimento, tal como nos é demonstrado no parágrafo 14 da Crítica da Razão. Podemos encontrar a forma das categorias nas intuições de objetos da experiência, mas não podemos dizer que a imagem que se apresenta aos nossos olhos apresenta as categorias. Em outras palavras podemos dizer que a imagem não tem uma estrutura gramatical (dada pelas categorias), somente aquilo que é o objeto visto na imagem tem essa estrutura. Um exemplo paradigmático dessa diferenciação é dado ao vermos a areia da praia e a linha do horizonte do oceano. Se fizermos uma dissociação meramente explicativa dos momentos da percepção, poderíamos primeiramente ver a água acima da terra, pois no campo visual se o observador discrimina somente cores ele veria dessa maneira: duas linhas horizontais que delimitam grupos mais ou menos homogêneos de cores. Isso não é suficiente para que haja entendimento, é importante tomar a imagem como algo e é precisamente nesse ato que as categorias do entendimento novamente atuariam no nosso esquema. Elas dão o discernimento necessário para a compreensão do espaço, pois elas o unificam e são a ferramenta de discernimento dos diferentes objetos presentes. Evidentemente sabemos que isso se dá num ato somente, contudo é importante essa diferenciação meramente esquemática para compreender o papel das categorias na apreensão de um objeto segundo um sentido possível e que esse sentido possível está profundamente enraizado no esquema do conceito, sem o qual intuições seriam sem sentido.
O que confere a estrutura visual dos objetos é a ação das categorias sobre a intuição. Os conceitos puros do entendimento fornecem uma base gramatical para o pensamento dos objetos da intuição. Essa base gramatical não nos fornece imagens-modelos que sejam base para o esquema dos objetos, contudo está na base da estrutura necessária de síntese do espaço para que um objeto apareça à mente. Portanto, as categorias já atuam na formação do esquema quando este é derivado de um conceito de objeto.

5.       Conclusão
Voltemos então ao problema inicial: Qual o papel que jogam os conceitos puros do entendimento (as categorias) no entendimento do “objeto que é visto”?
Se as categorias já estão presentes no esquema e este é o conjunto das intuições de um objeto determinado tomadas perspectivamente, então devemos admitir que sua ação se dá também na tomada do objeto que é visto, pois este é a forma como tomamos pelo entendimento o objeto que se dá na intuição. Devemos entender que a significação do conceito sobre o esquema é o que determina o objeto que é visto pelos olhos do entendimento e o papel organizador das categorias sobre a “montagem” da intuição deve ser reconhecida como atuante em conjunção com o papel sintético da imaginação.
Tanto a imaginação produtiva deve produzir objetos em conformidade com as regras de síntese do entendimento, como a imaginação reprodutiva deve associar objetos de acordo com essas regras. Se não houver uma ação conjunta das categorias com a imaginação, os objetos que são vistos não estariam em conformidade com o esquema, logo, não haveria identidade entre o objeto visto e o que se vê do objeto.



[1] Um conceito é uma representação mediata que reúne objetos singulares sob uma regra universal de formação. Essa regra de formação tem a estrutura de um juízo, pois todos os conceitos são compostos de notas particulares que os torna predicados possíveis de juízos.
A unidade do conceito de um objeto empírico com a sua intuição correspondente é traçada pelos conceitos puros do entendimento, as categorias. Estes conceitos são atos de síntese pura do entendimento e são condição para a experiência do mundo.

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